Torá em Português
Parashat Toldot
Herdeiros da Voz
Tradução de español: David Abreu
Quando penso em surpresas da natureza e caprichos da genética, o nascimento de Yaakov e Esav me vem à mente.
Como dois gêmeos podem ser tão diferentes?
Aquele, Esav, cabeludo. O outro, Yaakov, sem pelos.
Aquele, Esav, um homem do campo e da caça. O outro, Yaakov, um homem de casa e família.
Aquele, Esav, fala por meio de suas mãos. O outro, Yaakov, fala por meio de sua voz.
O nascimento destes gêmeos representa muito mais do que o nascimento de duas pessoas: marca para a tradição de Israel o nascimento de duas formas de enfrentar a vida: pela força e pela violência ou pela palavra e pela comunicação.
Alguém pode ser Esav também como pai ou marido e pode ser Yaakov como professor ou como nação.
Existem países que herdaram a espada de Esav e outros que são herdeiros da voz de Yaakov.
O poder domina e impõe respeito, é verdade.
Mas a palavra é aquela que sempre perdura e vence. Nada pode superar o calor de uma palavra apropriada.
O famoso fabulista Esopo certa vez sintetizou essa ideia por meio de uma parábola:
O sol e o vento discutiam para ver quem era o mais forte. O vento disse: 'Vês aquele velho enrolado numa capa? Aposto que farei com que ele remova a capa mais rápido do que você.
O sol estava escondido atrás de uma nuvem e o vento começou a soprar, cada vez mais forte, até virar quase um ciclone, mas quanto mais soprava, mais o homem se enrolava na capa.
Por fim o vento parou e ele se declarou derrotado e então o sol apareceu e sorriu calorosamente para o velho.
Não demorou muito para que o velho, aquecido pelo calor do sol, tirasse sua capa. O sol então mostrou ao vento que a suavidade e o amor dos abraços são mais poderosos do que a fúria e a força.
Esta fábula de Esopo nos faz notar um grande paradoxo: não há maior fraqueza no mundo do que a força sem consideração, sem responsabilidades e sem considerar as consequências.
Suavidade, amor, fala e tolerância são fortes mesmo quando parecem - à primeira vista - frágeis e delicados.
HaKol Kol Yaakov VeHaIadaim Idei Esav …
A voz é a voz de Yaakov, mas as mãos são as mãos de Esav.
Esta foi a expressão de espanto de nosso patriarca Yitzchak quando percebeu, na escuridão de sua cegueira, que aquele que estava pedindo uma bênção não era conhecido por ele.
Yaakov, coberto de pele de cabra diante de seu pai cego, se transformou em um ser híbrido desprovido de identidade: ele manteve sua própria voz, mas pediu emprestadas as mãos de seu irmão.
Somos um povo que ao longo das gerações é caracterizado apenas por nossa voz como dignos descendentes de Yaakov.
É verdade que o povo judeu vive uma das fases mais favoráveis dos últimos dois mil anos. Vivemos em um estado próprio, não mais por empréstimo, que nos protege e nos completou como nação.
Mas, ao mesmo tempo, vivemos uma das maiores crises de identidade dos últimos dois mil anos. O povo judeu se olha no espelho e vê uma sociedade na qual, alguns carregam a bandeira da voz de Yaakov, mas outros adoram as mãos de Esav.
Por dois mil anos, escrevemos livros. Hoje continuamos a escrevê-los e exportar ciência, mas também exportamos armas.
É bom - eu diria essencial - ter um Estado forte e ser cuidado pelo exército mais poderoso do Oriente Médio. Mas devemos sempre lembrar que pegamos emprestadas aquelas mãos de Esav para proteger a voz de Yaakov.
Talvez sejamos muitas vezes forçados a agir - como diz Esopo - com a virulência do vento. Mas devemos ter em mente que em longo prazo, teremos que agir com o calor do sol, que o autêntico roshem (impressão), que a raça humana deve receber de nós, tem a ver com o impacto de nossa voz e não com a força de nossas próprias mãos. Somos herdeiros da voz.